sábado, 4 de outubro de 2008

A matéria mais difícil


Por Priscilla Mendes

Na verdade nem sei por onde começar, a única coisa que sei é que tudo que presenciei e vivi hoje irei guardar para o resto da minha vida, quero contar para os meus futuros filhos e bem mais futuros, netos. Passei a enxergar a vida com outros olhos, porque além de passar por uma prova, estive ao lado de pessoas maravilhosas, batalhadoras e que mostraram que nunca devemos desistir dos nossos sonhos e principalmente que devemos lutar dia-a-dia como se aquele instante fosse o último de nossas vidas.

Passei por uma prova e conheci pessoas especiais, graças ao jornal Voz da Periferia que me ensina coisas novas diariamente, que me ensina o que é ser jornalista, o verdadeiro significado de jornalismo popular e principalmente que humildade é a melhor virtude que o homem deve ter.

Hoje, quando acordei, era uma pessoa e agora que escrevo sou outra, comecei o meu dia bem cedinho, como sempre, mas não imaginava que o meu dia seria tão diferente dos outros. As 08h30min da manhã agendei uma entrevista com o Cristiano, 27 anos e morador do extremo sul da periferia de São Paulo. Ao chegar fui recepcionada por um homem "igual" aos outros, ele vestia uma calça preta, uma camiseta azul do Brasil e um sapato preto, até então normal. Desci as escadas da casa dele e entrei na sala e lá iniciamos um bate papo que não esquecerei nunca.

Cristiano nasceu com as duas pernas sem perônio – o osso externo que liga o joelho ao tornozelo. Estava condenado à uma vida inteira na cadeira de rodas, ou à amputação das duas pernas, abaixo do joelho. Para abrir caminho à tecnologia das próteses, dona Nilzete, mãe de Cristiano, decidiu que deveria ser amputada as pernas do seu filho, e naquele instante nasceu um homem igual aos outros, apenas com duas pitadas de diferença.

Desde os 6 anos de idade, mesmo sem as duas pernas, Cristiano joga futebol na quadra e no campo e, detalhe, apenas ele no time tem deficiência física. Além de jogar futebol e participar de campeonatos regionais, ele trabalha, faz faculdade de teologia, nas horas vagas gosta de mexer em motores de carro e também prática natação. Hoje ele também vê a vida de outra forma, há dois anos atrás ele traficava, era usuário de cocaína, já foi pichador e também já esteve preso. Conversei com ele uma hora e meia, tirei fotos dele, medalhas, troféus e saí de lá com um exemplo de vida.

Se não bastasse só um exemplo, fui para o Centro de São Paulo à procura de pedintes para fazer outra matéria, ao chegar abordei um morador de rua, só que ele não quis falar comigo porque disse que só falava inglês. Aí conversei com outros dois moradores de rua que são pedintes. Sem eu saber Deus tinha colocado no meu caminho duas pessoas brilhantes. Carlos, 23 anos, morou 2 anos na rua e há 7 dias retornou e Ana Paula, 39 anos, ex moradora de rua e ex usuária de crack, só que hoje ela ainda vive na rua para tentar tirar das drogas a pessoa que a incentivou a sair, que é o marido viciado em crack. Cada um contou algumas histórias, mas a história que mais mexeu comigo foi a do Anjo da Sé, um morador de rua que vive pedindo esmolas, mas todas as manhãs ele pega o dinheiro arrecadado e compra duas formas de bolo, que a Ana Paula faz para vender nos pontos de ônibus, ao comprar os bolos ele sai distribuindo para os outros moradores de rua.

Todas essas histórias foram mexendo a minha cabeça no decorrer do dia, só que eu tinha pela frente o grande teste. Sei que muitas pessoas se tornam pedintes porque precisam como é o caso do Anjo da Sé, mas outras abusam da boa fé e pedem porque querem ou até mesmo utilizam crianças para arrancar dinheiro das pessoas. Eu tinha que saber qual era a sensação de ser pedinte e o valor que eles conseguem arrecadar em média por dia e por isso resolvi me passar por pedinte.

A sensação foi terrível, confesso que foi a pior que já tive até hoje. Ao me vestir "estranha" as pessoas me olhavam como se eu fosse um E.T, sem ter em mente o que dizer, entrei de cabeça baixa na lotação e comecei a falar: "BOA TARDE PASSAGEIROS, DESCULPE INCOMODAR A VIAGEM DE VOCÊS, MAS VENHO AQUI PARA PEDIR AJUDA DE CADA UM, ESTOU DESEMPREGADA E OS MEUS PAIS SÃO DE IDADE E NÃO CONSEGUEM ARRUMAR EMPREGO. EU TENHO 4 IRMÃOS MAIS NOVOS E EU SOU A MAIS VELHA E É TERRIVEL VER OS MEUS IRMÃOS PEDINDO AS COISAS E MAIS TERRIVEL AINDA É VER OS MEUS PAIS CHORANDO SEM PODER DAR O QUE OS MEUS IRMÃOS PEDEM. MEUS PAIS POR SEREM DE IDADE PRECISAM DE REMÉDIOS E EU NÃO POSSO AJUDAR, EM CASA NÃO TEMOS NADA PARA COMER E ESSE FOI O ÚNICO JEITO QUE ENCONTREI, ACEITO QUALQUER COISA, ATÉ MESMO QUEM TIVER ALGO DE COMER EU ACEITO". De cabeça baixa e com voz de choro pela sensação, consegui arrecadar algumas moedas. Ao recolher o dinheiro as pessoas me olhavam com desprezo, com nojo, pena e cada vez a vontade de chorar era maior.

Fiquei na 1ª viagem seis minutos e foram os mais longos da minha vida, quando desci da lotação a única coisa que fazia era chorar, porque nunca imaginei que passaria por essa situação e que a experiência seria tão dolorosa e triste. A vergonha que senti, a humilhação que passei marcou a minha vida. Sou contra quem dá dinheiro aos pedintes, afinal gera até a exploração de crianças, mas hoje senti e vi de perto o que as pessoas que realmente precisam passam.

Priscilla Mendes

Nenhum comentário: